Na América Latina e Caribe mais de 134 milhões de pessoas vivem em assentamentos precários. O Brasil concentra a maior parte destes assentamentos com 52,3 milhões de pessoas.
O processo de urbanização brasileira é marcado por um grave quadro de desigualdades sócio-econômicas, que alia modernização e crescimento a realidades de exclusão social expressa em uma extensa produção doméstica ilegal das cidades e de moradias. 
No Brasil, ocorreu um dos mais rápidos processos de urbanização do mundo: em 1940, as cidades abrigavam 31,4% da população do país; em 1975, esse índice já era de 61%; e, em 1991, era de 75%; e em 2000, 81,2%. O Brasil passou também por um processo de urbanização da pobreza: 85% dos pobres moram em cidades; mais de 1/3 dos pobres urbanos estão concentrados nas 10 principais regiões metropolitanas, segundo dados do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Um terço das moradias no país são inadequadas, sem acesso a serviços básicos como saneamento, coleta de lixo e sem o registro de titularidade. O déficit habitacional é de 7,9 milhões de domicílios, com 90,3% correspondendo às famílias com renda até 3 salários mínimos. Há 15,6 milhões de pessoas sem água canalizada de rede geral, 34,6 milhões sem esgoto de rede geral ou fossa séptica e 5,2 milhões sem coleta direta ou indireta de lixo; e o gasto com moradia (29%) e transportes (15%) vem comprometendo parte significativa do orçamento familiar.
A população de baixa renda vem tendo, de modo predominante, acesso à terra urbana e a alternativas habitacionais mediante ações informais e irregulares de ocupação da terra e autoconstruções de baixa qualidade, em áreas com infra-estruturas precárias e fragilidades ambientais.
A maior parte da população brasileira não participa do mercado imobiliário privado legal. Os rendimentos e salários vêm sendo insuficientes para a compra da moradia e as políticas são ineficientes em assegurar o acesso à moradia.
A autoconstrução da moradia define um processo de trabalho diferente das produções mercantis ou capitalistas. Envolve trabalho não remunerado de moradores, muitas das vezes auxiliados por parentes, amigos e vizinhos, e, freqüentemente, contam com profissionais contratados, pedreiro, encanador, eletricista etc. Essas produções, inicialmente, têm alto valor de uso, mas não deixam de integrar um mercado, mesmo que informal.
Os recursos envolvidos são, na maior parte dos casos, insuficientes para uma produção completa em curto espaço de tempo. Normalmente, a casa cresce lentamente, contando com os materiais tradicionais, poucas ferramentas, nenhuma especialização técnica; gerando moradias que, em sua maioria, além de problemas construtivos, são insalubres, desconfortáveis e adensadas.
As políticas de desenvolvimento urbano, até o final dos anos 70, oscilaram entre intervenções de cunho populista e as de traço autoritário. Como ação de âmbito nacional mais abrangente é importante destacar a Política Habitacional estruturada no Regime Militar a partir 1964 que apontou para um modelo centralizador, burocrático, autoritário e ineficaz de intervenção, que se caracterizou principalmente pelas remoções da população de baixa renda das áreas urbanas centrais e pela promoção de conjuntos habitacionais, de má qualidade, na periferia das grandes cidades. A inadequada localização dos conjuntos habitacionais foi um elemento estimulador do mercado fundiário especulativo, além de acarretar em desperdício de recursos públicos que foram aplicados em extensas redes de infra-estrutura.
O redirecionamento parcial das políticas de desenvolvimento urbano e habitacional, a partir da segunda metade dos anos 70, apontou para um novo padrão de intervenção pública (1), privilegiando programas alternativos, caracterizados por intervenções de urbanização dos assentamentos precários e de legalização da posse da terra e pelo estabelecimento de parcerias com as comunidades de baixa renda.
Parte dessas parcerias materializou-se a partir de programas governamentais em mutirões e processos de autoconstrução assistida para a urbanização das favelas, para construção de casas em lotes urbanizados e para a melhoria habitacional nos próprios assentamentos.
No final dos anos 70, movimentos sociais emergem num contexto de ressurgimento da vida associativa no país, com a perspectiva de formulação de novas políticas estatais: movimentos de classe (sindicais, urbanos e rurais); movimentos urbanos: de luta pelo acesso e posse da terra, pela urbanização da favela, por prestações de financiamentos habitacionais compatíveis com a renda dos mutuários; lutando por bens de consumo coletivo, nos setores de infra-estrutura urbana, saúde, educação, transportes etc.; e movimentos com temas específicos (de gênero, ambientais, de raça etc.).
A discussão sobre os novos rumos para essa relação sociedade e Estado no contexto de redemocratização, nos anos 80, ressaltou a descentralização (2) e a participação (3) como requisitos essenciais para a construção de políticas públicas.
Diversos movimentos articularam-se com a perspectiva de influenciar o processo de elaboração da nova Constituição Federal (1988). O Movimento Nacional pela Reforma Urbana – MNRU, articulação dos movimentos de moradia, ONGs, representantes de setores acadêmicos e de entidades profissionais, desencadeou um intenso processo de discussão e formulação de instrumentos de regulação, planejamento e gestão que formatariam uma emenda popular ao projeto constitucional.
É importante registrar que o processo de descentralização pós-constituição obrigou os municípios a assumirem compromissos para o enfrentamento do grave quadro de exclusão social incompatíveis, na maior parte dos casos, com seus recursos (4). Mesmo assim, algumas experiências municipais importantes foram desenvolvidas sob influência do ideário da Reforma Urbana, combinando novos instrumentos urbanísticos e de regularização fundiária e processos de gestão democrática.
Alguns avanços recentes no marco regulatório abrem perspectivas para construção de políticas urbanas que permitam o enfrentamento do quadro de desigualdades sócio-territoriais: a Lei Federal 10.275/01 – O Estatuto da Cidade que regulamenta o capítulo de política urbana da Constituição Federal de 1988 (artigos 182 e 183) – com novos instrumentos importantes para fortalecer a regulação, o planejamento e a gestão urbana; e a criação do Sistema e o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (Lei Federal 11124/2005).
Entre esses avanços, o projeto de lei de iniciativa popular do Fundo Nacional de Moradia Popular, 1992, fruto de uma grande articulação realizada pela União Nacional de Moradia Popular, o Movimento Nacional de Luta pela Moradia, a Central de Movimentos Populares e a Confederação Nacional das Associações de Moradores – CONAM foi sancionado em 2005. No processo foram envolvidos, além desses e outros representantes do movimento social e o governo, os empresários da construção civil e de imobiliárias. Essa lei estabelece o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social, definindo parâmetros para investimentos no setor habitacional e as formas de repasses de recursos entre governo federal, estados e municípios.
O Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU) – espaço de articulação das forças que integram o MNRU, com fóruns municipais, estaduais e regionais, vem promovendo importantes ações de pressão e lobby para a implementação de leis, programas e projetos que garantam os direitos sociais, participando de importantes avanços na política urbana: a criação do Ministério das Cidades (2003); as Conferências das Cidades (2003, 2005 e 2007); a criação do Conselho Nacional das Cidades (2003); a aprovação do marco regulatório do saneamento ambiental; a formulação da macropolítica de transporte, mobilidade e acessibilidade (2006); a elaboração dos planos diretores participativos municipais (2006); a elaboração da Plataforma Nacional de Prevenção aos Despejos (2006) entre outras.
No contexto das lutas em defesa do direito à moradia e do direito à cidade há a percepção que as conquistas recentes no âmbito institucional (estrutura das leis e formas institucionais que regulam as relações e produções sócio-espaciais, o planejamento e a gestão urbana) são insuficientes e que é necessário atuar:
– nas relações de poder, a partir do reconhecimento dos interesses e das posições estratégicas de atores nos processos políticos e de gestão das cidades, a partir de uma visão crítica sobre a realidade brasileira e sobre os modelos de desenvolvimento em disputa e de investimentos para o fortalecimento da vida associativa, da cultura de direitos, das articulações com movimentos que travam outras lutas (raça, gênero, economia solidária etc.) para que seja possível promover mudanças estruturais no quadro de exclusão sócio-territorial brasileiro;
– nas formas de intervenção do estado, evitando: a centralização, a falta de transparência e o autoritarismo das ações; critérios clientelistas na distribuição dos investimentos; e o descaso com as necessidades da população e com qualidade ambiental e urbanística dos projetos;
– no fortalecimento das alternativas e experiências organizadas pela sociedade civil de produção dos espaços de moradia, para além da produção estatal e de mercado.
Em relação às experiências organizadas pela sociedade civil, algumas dessas experiências de grupos populares, associações de moradores, cooperativas etc. vêm sendo desenvolvidas de modo inovador e participativo. Em diversas situações há articulação com programas governamentais e a utilização de fundos públicos. Essas experiências permitem um maior contato do morador produtor com a habitação, possibilitando-lhe um contato desalienante com o produto a partir de uma visão integrada de processo.
A produção da moradia a partir das experiências que têm a sociedade civil como protagonista do processo vem sendo reconhecida como Produção Social do Habitat (PSH). A PSH é defendida em diversas leis e manifestos relacionados à habitação, inclusive na Carta Mundial do Direito à Cidade. Os cinco elementos fundamentais da proposta das Nações Unidas relativa à PSH são: moradia, água, esgotos, regularização fundiária e fixação de no máximo duas pessoas por habitação. Portanto, a perspectiva é apontar para uma visão mais abrangente e integral sobre o acesso à moradia, envolvendo para além das unidades habitacionais, várias dimensões referentes às condições de saneamento ambiental e à regularização da situação fundiária. Acrescentaríamos a necessidade de atenção a aspectos como, mobilidade, transportes e acessibilidade; acesso a equipamentos e espaços de educação, lazer e cultura; e relação entre localização e oportunidades de trabalho e renda entre outras questões.
A Produção Social do Habitat é viabilizada, principalmente, mediante o incentivo aos processos autogerenciados, tanto individuais e familiares quanto coletivamente organizados, como os mutirões, as cooperativas habitacionais, e pelo financiamento de soluções habitacionais. Seu objetivo é satisfazer necessidades individuais e coletivas, promover a construção de um habitat sustentável e contribuir para o fortalecimento da solidariedade, da cidadania responsável, das economias locais, do protagonismo de famílias, comunidades e grupos.
Habitat para Humanidade – HPH é uma organização não governamental fundada em 1976, nos EUA, que, no âmbito da Produção Social do Habitat, vem desenvolvendo projetos em 100 países, com mais de 200 mil moradias construídas em todo o mundo.
HPH Brasil foi criada em 1992 e atua pela implementação de políticas que garantam direitos à moradia e à cidade e em vários estados brasileiros, construindo casas em mutirão (autoconstrução assistida), com o objetivo de fortalecer o processo organizativo das comunidades e o protagonismo das famílias. Vem atuando com famílias com necessidade de moradia e renda até três salários mínimos, selecionadas por sua disponibilidade para o trabalho em mutirão e para a capacitação durante o processo. A redução do custo e o aumento da produtividade nessa produção são questões fundamentais a serem perseguidas no processo, considerando a relação qualidade vs. disponibilidade de recursos.
As atividades desenvolvidas por HPH Brasil incluem a Defesa da Causa do Acesso à Moradia Digna, com participação em movimentos de Luta por Moradia, nos Fórum de Reforma Urbana e Conferência das Cidades, promoção de seminários sobre PSH e em processos de Construção das Políticas Públicas; e o desenvolvimento comunitário combinado a processos de PSH, com construção de alianças (famílias, comunidade, empresas, voluntários, governos, ONGs entre outros.), diagnóstico da comunidade, assessoramento e construção coletiva do projeto técnico, oficinas de cidadania e capacitação para o processo construtivo, alfabetização financeira das famílias, acesso a crédito (Fundo de Crédito Rotativo Solidário), acesso a programas governamentais etc.
A base de todo o trabalho de HPH vem do entendimento de que a PSH está relacionada ao reconhecimento dos direitos à moradia digna e a viver na cidade como direitos humanos, a partir de um contexto social e comunitário que transforme a vida das pessoas e de suas comunidades.

(1) É importante ressaltar que este novo padrão de intervenção ainda conviveu com ações que refletiam o padrão “remoção / periferização” da população de baixa renda nas grandes cidades.
(2) A descentralização passa a fazer parte da agenda governamental, constituindo-se em um elemento fundamental para a reestruturação do pacto federativo; desencadeando um processo de municipalização das políticas urbanas.
(3) O processo de participação, após longo período de ditadura militar, representava a possibilidade de democratização política, mediante o estabelecimento de mecanismos que viabilizassem a incorporação atores sociais ao sistema político, ao mesmo tempo em que serviria de instrumento para, a partir da democratização do planejamento e das decisões governamentais, um direcionamento mais eficaz e justo dos recursos públicos.
(4) O enfrentamento deste quadro foi dificultado ainda mais em função de um padrão reativo / imediatista predominante na gestão das políticas urbanas, em âmbito municipal, dentro de um contexto, de baixa institucionalidade e de históricas práticas particularistas e expresso em ações dominadas pela imprevisão com graus variados de (des)consideração dos instrumentos normativos e de gestão democrática.