ENTREVISTA DA 2ª/RAQUEL ROLNIK – Folha de Sâo Paulo 30/06/2008
Relatora da ONU vê “esquizofrenia” em política federal para a habitação
Ex-secretária do Ministério das Cidades diz que o governo fez opção pelo crescimento sem planejamento
(Organização das Nações Unidas), a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik, 51,enxerga um paralelo entre as políticas de habitação e as de meio ambiente do governo federal. A opção pelo crescimento sem planejamento, de acordo com a arquiteta, já causa problemas sérios no país. Um desses problemas, segundo Rolnik, é o agravamento do trânsito nas grandes cidades brasileiras.
Raquel Rolnik afirma ter deixado o comando da Secretaria de Projetos Urbanos do Ministério das Cidades, neste ano, justamente por discordar dessa política “esquizofrênica” do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A arquiteta assumirá no segundo semestre uma cadeira na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (Universidade de São Paulo). De São Paulo, Rolnik tocará seus trabalhos para a ONU. Seu primeiro relatório, que será apresentado no mês de outubro, em Nova York, vai abordar o impacto do aquecimento global e da crise imobiliária dos Estados Unidos nas questões de moradia. Leia, a seguir, trechos da entrevista dada por Raquel Rolnik à Folha:
FOLHA – Quais serão os temas de seu primeiro relatório para a Organização das Nações Unidas?
RAQUEL ROLNIK – Vou dar seqüência na divulgação de um guia elaborado por meu antecessor [o indiano Miloon Khotari] para que direitos sejam respeitados em casos de despejo ou remoção. E quero trabalhar temas emergentes. O primeiro é a conseqüência das mudanças climáticas na questão da moradia. Há o caso de Nova Orleans [cidade do sul dos Estados Unidos devastada pelo furacão Katrina, em 2005]. Ainda hoje muitas vítimas da inundação estão sem abrigo. O segundo é a crise imobiliária. Ela é tratada como instabilidade do sistema financeiro, mas tem outra dimensão: pessoas não conseguem pagar suas casas e estão na rua. E vamos trabalhar um tema caro ao Brasil: os grandes eventos esportivos, como as Olimpíadas e a Copa do Mundo. Eles mobilizam muito investimento público e privado num período concentrado, o que pode resolver questões de moradia.
FOLHA – Como a sra. vê o pós-Pan do Rio?
ROLNIK – Ficaram basicamente equipamentos esportivos, que são importantes. Mas o que melhorou na condição de vida de quem vive na cidade do Rio, que atravessa uma crise urbana grave? Eu acho que isso é uma pauta para a Copa do Mundo de 2014, no Brasil. Será uma oportunidade para enfrentar questões urbanísticas, dentre elas a da moradia. Nós teremos a chance de mobilizar recursos nas favelas e na integração de espaços das cidades.
FOLHA – Fala-se em ausência de Estado nas favelas. Mas, quando o Estado chega, às vezes intervém de maneira desastrosa, como aconteceu recentemente no morro da Providência, no Rio.
ROLNIK – No Brasil, boa parte das pessoas não tem acesso a um lugar
adequado, formal, conectado aos equipamentos e serviços da cidade. Sem renda, não lhes resta alternativa: ocupam locais onde o mercado imobiliário não chegou por impedimento legal ou físico. Não é por acaso que as favelas estão em morros ou áreas de preservação ambiental. Isso cria uma ambigüidade: por estar em situação irregular, seu direito de ter acesso a serviços públicos é sempre negociado com as autoridades, não é um direito automático. E eu não concordo com a afirmação de que o Estado está ausente. Ele está presente, mas de forma seletiva, não universal. A situação é explorada politicamente: troca-se o investimento pelo voto.
FOLHA – O que a sra. acha do projeto de urbanização de favelas do PAC
[Programa de Aceleração do Crescimento]?
ROLNIK – Nós temos de saudar esse investimento, que é incomum no Brasil. Para que todas as favelas sejam urbanizadas, nós vamos precisar manter esse ritmo por muitos anos. Mas é importante regularizar as favelas plenamente, com investimento urbanístico, ambiental, administrativo e patrimonial, para acabar com a ambigüidade. Então a favela vira bairro. É preciso ainda parar a máquina de produção de favelas que existe no país.
FOLHA – Como se pode, na sua opinião, parar essa máquina de produção de favelas?
ROLNIK – O subsídio ao crédito é uma novidade no Brasil e chegou às famílias com renda na faixa de quatro, cinco salários mínimos, pelo mercado privado, inclusive. Mas a maior parte do déficit habitacional está entre as que recebem de zero a três salários. E o aumento da disponibilidade de crédito está gerando o aumento do preço dos terrenos. Não há controle urbanístico e de proteção a áreas de interesse social como em países civilizados -é por isso que ainda existe pobre morando em Nova York. O PAC relega esses aspectos. Os pobres estão de fora de novo, e novas favelas se formam.
FOLHA – A área de habitação vive o mesmo problema da área ambiental, com falta de sustentabilidade?
ROLNIK – Existe uma esquizofrenia. O governo fez um esforço para implementar o Estatuto das Cidades, com ferramentas de intervenção no mercado de solos. Mas, na hora em que os recursos mais vultuosos para habitação saíram, essa pauta foi relegada. Não existe uma estratégia nacional para definir investimento e incorporar os planos diretores. Uma ou outra cidade incorporou, porque atores locais pressionaram, mas não houve a priorização do investimento sustentável. De certa maneira, existe semelhança, sim, com a questão ambiental.
FOLHA – O que isso pode gerar em 10, 15 anos?
ROLNIK – Um monte de apartamento vazio. Nosso déficit habitacional é de cerca de 7 milhões de unidades. E nós temos 6 milhões de casas e
apartamentos vazios no Brasil. Não existe um projeto público para orientar investimento privado. Existe ainda outro aspecto: com crescimento econômico, cidades vivem uma crise de imobilidade.
FOLHA – Os problemas no trânsito, por exemplo, são o tema da vez em São Paulo.
ROLNIK – Em São Paulo e em todo o Brasil, pois o modelo urbanístico das cidades não está na pauta. Enquanto o centro das cidades está cheio de apartamentos vazios, um tipo de produto imobiliário faz sucesso: os condomínios de classe média e alta em lugares distantes. Todos dependendo do automóvel. Essa crise pode levar à imobilidade. Não tem a ver com falta de investimento em transporte coletivo. Tem a ver com o modelo urbanístico.
FOLHA – A cidade pode ser vítima do crescimento econômico?
ROLNIK – É possível ter um desenvolvimento includente. Mas nosso país é primitivo nesse ponto de vista, ainda é marcado pela herança escravocrata, onde se acha que casa para pobre tem de ficar na periferia. Nossa elite tem essa visão, e a máquina do Estado está montada para perpetuá-la. A violência nas favelas é sua dimensão mais cruel.
FOLHA – Sua saída do Ministério das Cidades tem a ver com opções do governo?
ROLNIK – A secretaria [de Projetos Urbanos] foi perdendo recursos e
importância. Minha saída tem a ver, sim, com essa perspectiva. A agenda de reforma urbana que orientou a criação do Ministério das Cidades teve impulso nos dois primeiros anos do governo, só que depois minguou. Mas ainda ficaram os atores envolvidos. Um grande feito foi manter viva a interlocução com a sociedade. O Conselho das Cidades está ativo, e isso é importante.
FOLHA – O seu antecessor na relatoria da ONU dedicou atenção especial à reserva Raposa/Serra do Sol, em Roraima. A sra. é a favor da demarcação contínua?
ROLNIK – Eu não tenho dúvida sobre os direitos dos índios. Eu sou a favor da demarcação contínua. Dizer que é muita terra para poucas pessoas é uma balela quando temos latifúndios maiores do que a Bélgica nas mãos de um só proprietário.
FOLHA – Que experiência na área moradia do Brasil pode ser levada para o resto do mundo?
ROLNIK – No campo institucional e legal, nós somos um exemplo. O direito à moradia está escrito em nossa Constituição, nós temos o Estatuto das Cidades e temos também o sistema de habitação de interesse social.
FOLHA – Nós estamos bem só no papel?
ROLNIK – Nosso grande desafio é implementação, implementação, implementação… A singularidade do Brasil que chama a atenção de vários países do mundo é o fato de que todo esse processo de constituição institucional foi feito com muita participação popular. Nós somos uma referência para o mundo. Eu tenho certeza de que a minha indicação como relatora [da ONU para o direito à moradia] tem menos a ver com minha trajetória específica e mais a ver com a essa construção coletiva.