“O projeto autogestionário dos movimentos sociais em São Paulo não é um projeto de moradia, é uma nova forma de pensar a cidade”. A afirmação da professora Luciana Lago, do INCT Observatório das Metrópoles, é resultado da pesquisa Autogestão da moradia na superação da periferia urbana: conflitos e avanços, que consistiu na avaliação do programa MCMV Entidades, no período de 2009 a 2011. Ao estudar os exemplos de São Paulo e Porto Alegre, Luciana encontrou habitações de qualidade, autoestima, mobilização social e o sonho de construção de outra cidade, com uma nova periferia.

A pesquisa começou em 2009, quando Luciana Lago participou de um seminário em Porto Alegre. Durante dois dias, ela acompanhou os debates sobre financiamento habitacional para movimentos populares, sendo que no auditório estavam presentes lideranças agrícolas, urbanas, Movimento dos Sem Terra e outros grupos, todos sentados e negociando com a direção da Caixa Econômica e do Ministério das Cidades. “Ver aqueles movimentos sociais participando com tanto engajamento, buscando soluções conjuntas com os representantes do poder me chamou a atenção. Pensei que ali tinha uma coisa de diferente”, conta.

Naquele mesmo ano, o Minha Casa, Minha Vida (MCMV) Entidades começava a funcionar e incorporava o Crédito Solidário, criado pelo governo Lula em 2004 e direcionado para a autogestão da moradia por movimentos sociais. Luciana explica que o Crédito Solidário demorou muito para sair do papel, apenas em 2007 as casas começaram a ser construídas. “As lideranças me mostraram a experiência de Viamão e fiquei impressionada, porque as pessoas estavam conseguindo construir suas casas, ainda na periferia e sem infraestrutura, mas uma experiência de autogestão”.

Em seguida, a pesquisadora partiu para São Paulo – estado referência na produção de autogestão coletiva. Durante dois anos, visitou e acompanhou as experiências autogestionárias nos conjuntos União da Juta, Paulo Freire, Unidos Venceremos, Colinas do Oeste, entre outros.  Os resultados desse estudo e os novos projetos do INCT Observatório das Metrópoles para o cooperativismo habitacional podem ser conhecidos na entrevista a seguir.

Entrevista:

Luciana Corrêa do Lago, doutora em Arquitetura e Urbanismo e professora do IPPUR/RJ

Na pesquisa você fala que o resultado de São Paulo é surpreendente em relação ao Brasil, por quê?

O caso de São Paulo sobre autogestão de moradia está em outro nível em relação ao resto do país. Isso se deve às inovações e ao acúmulo de experiências, porque na verdade a capital paulista não começa sua experiência autogestionária no governo Lula com o Crédito Solidário, mas no governo da Luiza Erundina em 1989. Essa foi a grande diferença, e começou a partir da Igreja, das comunidades eclesiais de base. Quando a Luiza Erundina assume a Prefeitura de São Paulo, e ela era vinculada à Igreja, começa a doar terras para os movimentos populares construírem suas casas. E os movimentos começam a buscar informação, naquele período lideranças viajam para o Uruguai a fim de conhecer a experiência de autogestão que era inovadora.

Quer dizer que no início da década de 90, os movimentos de São Paulo começaram uma ação inédita no Brasil pela experiência da autogestão, e buscaram informação pra isso?

Sim. E o resultado foi a formação de lideranças, do uso de tecnologia e a participação de assessorias técnicas atuando com os movimentos. Até hoje você tem escritórios de arquitetura em São Paulo que acompanham as experiências de autogestão, uma parceria que começou na década de 90. Quando eu conheci essa história surgiu a ideia da pesquisa, já que tínhamos um material interessante sobre São Paulo e Porto Alegre e, a partir dele, poderíamos produzir estratégias para assessorar os movimentos em todo o país.

Mas em que medida essa experiência acumulada dos movimentos sociais de São Paulo ajudou na viabilização do programa Minha Casa, Minha Vida Entidades?

São três dimensões importantes a se destacar no caso de São Paulo. A primeira é a qualidade da moradia. Porque para as pessoas que participam das experiências de autogestão coletiva a casa onde elas vão morar tem que ser bonita.  Os moradores levam exigências para os arquitetos que muitas vezes eles não esperam. No conjunto Paulo Freire, por exemplo, os moradores queriam que o conjunto fosse pintado de verde, e recusaram a estrutura metálica proposta pela assessoria técnica. A justificativa para a cor verde é que queriam ver a casa de longe, quando estivessem chegando ao bairro; quer dizer, tem uma questão de autoestima muito forte ali. As pessoas querem varanda, vista, janela de tal cor, isso tudo vai dando adesão a esse tipo de projeto, tornando a mobilização e a participação mais fortes. E as moradias alcançam melhores resultados.

E em relação aos valores? Quais as diferenças entre o MCMV Entidades e o MCMV Empresarial?

O programa tem um teto pra todo mundo, mas percebemos que na experiência de autogestão coletiva os movimentos sociais conseguem fazer uma moradia melhor, com mais espaço. As construtoras constroem cada moradia com cerca de 40 m², à medida que a casa autogestionária tem cerca de 50 m², e com o mesmo valor. E isso ocorre porque a construtora tem uma taxa de lucro, enquanto essas experiências não, o valor vai todo para o beneficiamento do imóvel.

Além da qualidade da moradia, os movimentos sociais também têm atuado no entorno? Como tem sido isso?

União da Juta é o caso mais exitoso de São Paulo. A União Nacional de Moradia Popular (ONMP) coordenou a construção do conjunto da Juta no meio de vários daqueles antigos conjuntos habitacionais, os chamados BNHs. Em seguida, o movimento passou a se mobilizar para buscar melhorias de infraestrutura com a Prefeitura. Eles conseguiram uma creche, onde as pessoas da comunidade é que trabalham, são as mães que tomam conta dos próprios filhos. Fecharam uma parceria com a Caixa Econômica que instalou uma agência na região, também conseguiram um Posto de Saúde e melhorias de transporte. Esse exemplo mostra que a mobilização aparece como uma alternativa para a questão da moradia. E tudo aquilo que foi conquistado pelo movimento da União da Juta foi compartilhado para toda a região, é um projeto de bairro mesmo, e aqui eles vão além da construção da casa.

Acesse o último número da revista eletrônica e-metropolis, que traz o artigo da professora Luciana Lago

Veja o vídeo “A gente não constrói só casa…”, produzido pela equipe do Observatório sobre a experiência de autogestão coletiva

Nos estudos do Observatório, vimos que a primeira fase do programa MCMV tem gerado um novo boom imobiliário, e que as classes mais pobres estão sendo deslocadas para uma região ainda mais periférica. Isso acontece na experiência de São Paulo?

A pesquisa constatou isso no MCMV Empresarial. Na nossa leitura crítica mais uma vez os pobres estão sendo despejados, deslocados para a periferia da metrópole. No caso de São Paulo, os movimentos criticam isso, mas, ao mesmo tempo, propõem outra solução. Eles me disseram: “Luciana, a maioria das pessoas da nossa base não quer morar no centro, não querem que o movimento compre com o dinheiro da Caixa terrenos centrais. Eles querem suas casas na periferia, onde vão morar e construir um bairro”.

Quer dizer, existe possibilidade de se construir outra coisa nessas áreas periféricas, é isso que os movimentos estão dizendo. É possível fazer algo diferente do que o Estado faz hoje. Quando constroem um conjunto popular na periferia, o movimento exige o transporte, exige uma escola digna ali do lado, como eles conseguiram na zona Leste. E isso depende do poder do movimento de chegar e discutir com o município. Os movimentos em São Paulo buscam esse diálogo, às vezes conseguem, outras não. Mas eles estão mobilizados.

Essa experiência traz outra visão, porque se a gente acreditar que moradia popular tem que ser em área central, não tem jeito porque não existe mais terra. Então, temos que ir além do discurso crítico sobre o Minha Casa, Minha Vida, isto é, qual é o projeto de moradia popular? Se não vamos construir em áreas centrais, se só podemos construir na periferia, o que vamos oferecer para essa população.

E como a pesquisa vê a situação do Rio de Janeiro em relação às experiências de autogestão coletiva?

O Rio de Janeiro é um caso interessante porque está começando sua primeira experiência autogestionária com crédito da Caixa Econômica, a cidade não teve experiência anterior com o Crédito Solidário. A União Nacional de Moradia Popular está atuando aqui no Rio com a assessoria da Fundação Bento Rubião – ONG que trabalha com regularização fundiária. Essa primeira experiência está sendo feita em Juliano Moreira, que é um mega projeto da Prefeitura destinado à classe média. O movimento, depois de muita luta, conseguiu dois terrenos lá para construir em autogestão. Um deles já foi assinado o contrato, mas até hoje a Caixa Econômica não liberou o dinheiro. O contrato foi assinado em fevereiro e até hoje os recursos não foram liberados. O Observatório das Metrópoles já está acompanhando os dois projetos, e vai prestar assessoria até a sua finalização.

É preciso dizer que a realidade no Rio de Janeiro é outra: tudo é muito desarticulado, são poucas lideranças aqui, e o movimento tem pouca mobilização. A razão de cursos como o Curso de Capacitação e Formação de agentes sociais é oferecer formação para as lideranças comunitárias, formar novos grupos que consigam entrar na Caixa, negociar recursos a fim de produzir novas experiências de autogestão no Rio. Quer dizer, o Observatório das Metrópoles está participando deste processo de organização popular para moradia de autogestão coletiva. É esta a estratégia agora.

Pra gente terminar a entrevista, quais são os desafios para o MCMV Entidades? O que falta para que um número maior de movimentos sociais participe do programa?

Primeiro, conseguir abrir a Caixa Econômica Federal para os movimentos, fazer um trabalho interno na Caixa para acelerar essas experiências. Segundo, aumentar os recursos e viabilizar os movimentos para que façam uso desse dinheiro como autogestão. E não menos importante é o papel das Prefeituras no acesso à terra. Porque sem a participação das prefeituras e de um banco de terras não se vai muito longe. A Caixa Econômica espera isso das prefeituras, que garantam o acesso à terra para os movimentos populares.