Tenda de Reforma Urbana, 29 de Janeiro de 2009, Fórum Social Mundial, Belém
David Harvey
Para mim, é um imenso prazer estar aqui, mas em primeiro lugar eu gostaria de me desculpar por falar em inglês, que é a língua do imperialismo internacional. Eu espero que o que eu vou dizer seja suficientemente antiimperialista para que vocês me perdoem por isso. (aplausos)
Eu estou muito grato pelo convite que me fizeram, porque eu aprendo muito com os movimentos sociais. Eu vim aqui para aprender e para ouvir, e, portanto, eu já considero esta uma grande experiência educacional, pois, como disse Karl Marx certa vez, sempre há a grande questão acerca de quem vai educar os educadores.
Eu tenho trabalhado já há algum tempo com a idéia de um direito à cidade. Eu entendo que o direito à cidade significa o direito de todos nós a criarmos cidades que satisfaçam as necessidades humanas, as nossas necessidades. O direito à cidade não é o direito de ter – e eu vou usar uma expressão do inglês – as migalhas que caem da mesa dos ricos. Todos devemos ter os mesmos direitos de construir os diferentes tipos de cidades que nós queremos que existam.
O direito à cidade não é simplesmente o direito ao que já existe na cidade, mas o direito de transformar a cidade em algo radicalmente diferente. Quando eu olho para a história, vejo que as cidades foram regidas pelo capital, mais que pelas pessoas. Assim, nessa luta pelo direito à cidade haverá também uma luta contra o capital.
Eu quero agora falar um pouco sobre a história da relação entre o capital e a construção de cidades, fazendo uma pergunta: Por que o capital consegue exercer tantos direitos sobre a cidade? E por que as forças populares são relativamente fracas contra aquele poder? Eu também gostaria de falar sobre como, na verdade, a forma com que o capital opera nas cidades é uma de suas fraquezas. Assim, eu acredito que, dessa vez, a luta pelo direito à cidade está no centro da luta contra o capital. Nós estamos vivendo agora, como todos sabem, uma crise financeira do capitalismo. Se nós olharmos para a história recente, nós descobriremos que ao longo dos últimos 30 anos houve muitas crises financeiras. Alguém fez os cálculos e disse que desde 1970 houve 378 crises financeiras no mundo. Entre 1945 e 1970 houve apenas 56 crises financeiras. Portanto, o capital tem produzido muitas crises financeiras nos últimos 30 ou 40 anos. E o que é interessante é que muitas dessas crises financeiras têm origem na urbanização. No fim da década de 1980, a economia japonesa quebrou, e quebrou por conta da especulação da propriedade e da terra. Em 1987, nos Estados Unidos, houve uma enorme crise, na qual centenas de bancos foram à falência, e tudo se deveu à especulação sobre a habitação e o desenvolvimento de propriedade imobiliária. Nos anos de 1970 houve uma grande crise mundial nos mercados imobiliários. E eu poderia continuar indefinidamente, dando-lhes exemplos de crises financeiras com origens urbanas. Meu cálculo é que metade das crises financeiras dos últimos 30 anos teve origem na propriedade urbana. As origens dessa crise nos Estados Unidos estão em algo chamado crise das hipotecas sub prime. Mas eu chamo esta crise não de crise das hipotecas sub prime, e sim de crise urbana.
O que aconteceu foi que nos anos de 1990 surgiu o problema de um excedente de dinheiro sem destinação – o capitalismo é um sistema que sempre produz excedentes. Nós podemos pensar a coisa da seguinte forma: o capitalismo acorda certa manhã e vai ao mercado com certa quantidade de dinheiro e compra trabalho e meios de produção. Ele põe estes elementos para trabalhar e produz certo bem, para vendê-lo por mais dinheiro do que ele tinha no começo. Assim, no fim do dia o capitalista tem mais dinheiro do que ele tinha no começo do dia. E a grande pergunta é: o que é que ele faz com aquele extra que conseguiu? Bem, se ele fosse como você e eu, ele provavelmente sairia e se divertiria gastando o dinheiro. Mas o capitalismo não é assim. Há forças competitivas que o impelem a reinvestir parte de seu capital em novos desenvolvimentos. Na história do capitalismo, tem havido uma taxa de crescimento de 3% desde 1750. Uma taxa de crescimento de 3% significa que é preciso encontrar saídas para o capital. Desse modo, o capitalismo sempre se confronta com aquilo que eu chamo de problema da absorção do excedente do capital: onde eu posso encontrar uma saída lucrativa em que aplicar o meu capital? Em 1750, o mundo inteiro estava aberto para essa questão. E, àquela época, o valor total da economia global era de 135 bilhões de dólares em bens e serviços. Quando se chega a 1950, há 4 trilhões de dólares em circulação, e você tem que encontrar saídas para 3% de 4 trilhões. E quando se chega ao ano 2000, tem-se 42 trilhões de dólares em circulação. Hoje, provavelmente, este valor chega a cerca de 50 trilhões. Em 25 anos, a uma taxa de crescimento de 3%, ele será de 100 trilhões. Isso significa que há uma crescente dificuldade em encontrar saídas rentáveis para o excedente de capital.
Essa situação pode ser apresentada de outra forma. Quando o capitalismo era essencialmente o que acontecia em Manchester e em outros poucos lugares do mundo, uma taxa de crescimento de 3% não representava um problema. Agora nos temos que colocar uma taxa de 3% em tudo que acontece na China, no Leste e no Sudeste asiáticos, na Europa, em grande parte da América Latina e na América do Norte, e aí nós temos um imenso, gigantesco problema. Os capitalistas, quando têm dinheiro, têm também a escolha de como reinvesti-lo. Você pode investir em nova produção. Um dos argumentos para tornar os ricos ainda mais ricos é que eles reinvestirão na produção, e que isso gerará mais emprego e melhores padrões de vida para o povo. Mas desde 1970 eles têm investido cada vez menos em novas produções. Eles têm investido na compra de ativos, ações, direitos de propriedade, inclusive intelectual, e, é claro, em propriedade imobiliária. Portanto, desde 1970, cada vez mais dinheiro tem sido destinado a ativos financeiros, e quando a classe capitalista começa a comprar ativos, o valor destes aumenta. Assim eles começam a fazer dinheiro com o crescimento no valor de seus ativos. Com isso, os preços da propriedade imobiliária aumentam mais e mais. E isso não torna uma cidade melhor, e sim a torna mais cara. Além disso, na medida em que eles querem construir condomínios de luxo e casas exclusivas, eles têm que empurrar os pobres para fora de suas terras – eles têm que tirar o nosso direito à cidade. Em Nova York, eu acho muito difícil viver em Manhattan, e vejam que eu sou um professor universitário razoavelmente bem pago. A massa da população que de fato trabalha na cidade não tem condições de viver na cidade porque o preço dos imóveis subiu exageradamente. Em outras palavras, o direito das pessoas à cidade foi subtraído. Às vezes ele é subtraído por meio de ações do Mercado, às vezes por meio de ações do governo, que expulsa as pessoas de onde elas vivem, às vezes ele é subtraído por meios ilegais, violentos, ateando-se fogo a um prédio. Houve um período em que parte de Nova York sofreu incêndio após incêndio.
O que isso faz é criar uma situação em que os ricos podem cada vez mais exercer seu domínio sobre toda a cidade, e eles têm que fazer isso, porque essa é a única forma de usar seu excedente de capital. E em algum momento, entretanto, há também incentivos para que esse processo de construção da cidade alcance as pessoas mais pobres. As instituições financeiras concedem empréstimos aos empreendedores imobiliários para que eles desenvolvam grandes áreas da cidade. Você tem os empreendedores que promovem o desenvolvimento, mas o problema é: para quem eles vendem os imóveis? Se a renda da classe trabalhadora estivesse crescendo, então talvez eles poderiam vendê-los para os trabalhadores. Mas desde os anos de 1970 as políticas do neoliberalismo têm implicado reduções salariais. Nos EUA, os salários reais não têm aumentado desde 1970, de tal modo que se tem uma situação em que os salários reais são constantes, mas os preços dos imóveis estão subindo. E de onde vem a demanda por habitação? A resposta consistia em conduzir as classes trabalhadoras a uma situação de débito. E o que nós vemos é que o débito com habitação nos EUA passou de cerca de 40.000 dólares por família para mais de 120.000 dólares por família nos últimos 20 anos. As instituições financeiras batem nas portas dos trabalhadores e dizem “Nós temos um bom negócio para você. Nós lhe emprestamos dinheiro e você pode ter sua casa própria. E não se preocupe se mais adiante você não conseguir pagar sua dívida, porque os preços dos imóveis estão subindo, então tudo está bem.”
Assim, mais e mais pessoas de baixa renda foram levadas a contrair dívidas. Mas cerca de dois anos atrás, os preços dos imóveis começaram a cair. A distância entre o que os trabalhadores podiam pagar e o tamanho da dívida tornou-se grande demais. De repente houve uma onda de execuções de hipotecas em muitas cidades americanas. Mas como geralmente acontece com algo desse tipo, há um desenvolvimento geográfico desigual de tal onda. A primeira onda atingiu comunidades de baixíssima renda em muitas das cidades mais antigas dos Estados Unidos. Há um maravilhoso mapa que pode ser visto na página eletrônica da BBC das execuções hipotecárias na cidade de Cleveland. O que se vê é um mapa pontilhado das execuções, que é altamente concentrado em certas áreas da cidade. Há do lado deste um outro mapa, que mostra a distribuição da população afro-americana, e os dois mapas correspondem entre si. O que isso significa é que ocorreu um roubo à população afro-americana de baixa renda. Esta foi a maior perda de ativos de populações de baixa renda nos EUA de todos os tempos: dois milhões de pessoas perderam suas casas. E naquele mesmo momento o pagamento de bônus em Wall Street ultrapassava a casa dos 30 bilhões de dólares – que é o dinheiro extra pago aos banqueiros pelo seu trabalho. Assim, os 30 bilhões pagos em Wall Street foram efetivamente retirados das populações dos bairros de baixa renda. Fala-se sobre isso nos Estados Unidos como um “Katrina financeiro”, porque, como vocês se lembram que o furacão Katrina atingiu particularmente Nova Orleans, e foi a população negra de baixa renda que foi deixada para trás, sendo que muitos morreram. Os ricos protegeram seu direito à cidade, mas os pobres essencialmente perderam o deles.
Na Flórida, na Califórnia e no Sudoeste americano, o padrão foi diferente. Ele se mostrou muito mais nas periferias das cidades. Lá, muito dinheiro estava sendo emprestado a grupos de construtoras e incorporadoras. Eles estavam construindo casas fora da cidade, 45km fora de Tuscon e de Los Angeles, e não conseguiam encontrar para quem vendê-las. Então eles buscaram a população branca que não gostava de viver perto de imigrantes e de negros nas cidades centrais. Isso levou a uma situação que se revelou há um ano, quando os altos preços da gasolina tornaram as coisas muito difíceis para aquelas comunidades. Muitas pessoas não conseguiam pagar suas dívidas, de modo que aconteceu uma onda de execuções hipotecárias que está se dando nos subúrbios, e atinge principalmente os brancos, em lugares como a Flórida, o Arizona e a Califórnia. Enquanto isso, o que Wall Street fez foi pegar todas aquelas hipotecas de risco e embrulhá-las em estranhos instrumentos financeiros. Eles pegavam todas as hipotecas de um determinado lugar e colocavam-nas num pacote, e então vendiam partes daquele pacote para outras pessoas. O resultado é que todo o mercado financeiro de hipotecas se globalizou, e o que se vê são pedaços de propriedade hipotecária sendo vendidas para pessoas na Noruega, na Alemanha, no Golfo e em qualquer lugar. Todos foram convencidos de que essas hipotecas e esses instrumentos financeiros eram tão seguros quanto casas. Acabou que eles não se mostraram seguros, e então sobreveio a grande crise, que segue sem parar. Meu argumento é que se essa crise é basicamente uma crise de urbanização, então a solução deve ser uma urbanização diferente, e é aí que a luta pelo direito à cidade se torna crucial, porque nós temos a oportunidade de fazer algo diferente.
Mas sempre me perguntam se essa crise é o fim do neoliberalismo. Minha resposta é “não”, se se olha para o que está sendo proposto em Washington e em Londres. Um dos princípios básicos que foram estabelecidos na década de 70 é que o poder do Estado deve proteger as instituições financeiras a qualquer preço. Se há um conflito entre o bem estar das instituições financeiras e o bem estar do povo, opta-se pelo bem estar das instituições financeiras. Este é o princípio que foi desenvolvido na cidade de Nova York City em meados dos anos 70, e que foi definido internacionalmente pela primeira vez quando houve a ameaça de falência do México em 1982. Se o México tivesse ido à falência, isso teria destruído os bancos de investimentos de Nova York. Assim, o Banco Central dos Estados Unidos e o Fundo Monetário Internacional combinaram esforços para ajudar o México a não entrar em falência. Em outras palavras, eles emprestaram o dinheiro que o México precisava para pagar os banqueiros de Nova York. Mas, ao fazê-lo, eles impuseram austeridade à população mexicana. Ou seja, eles protegeram os bancos e destruíram as pessoas. Essa tem sido a prática padrão do FMI desde então. Agora, se olharmos para a resposta dada à crise pelos Estados Unidos e a Inglaterra, nós veremos que o que eles efetivamente fizeram foi salvar os bancos – são 700 bilhões de dólares para os bancos nos EUA. Eles não fizeram absolutamente nada para proteger os proprietários de imóveis que perderam suas casas. Então, é este exatamente o mesmo princípio que agora vemos em funcionamento: proteger as instituições financeiras e foda-se o povo. O que nós deveríamos ter feito era pegar os 700 bilhões e criar um banco de redesenvolvimento urbano, para salvarmos todas as comunidades que estavam sendo destruídas e reconstruir as cidades a partir das demandas populares. O interessante é que, se nós tivéssemos feito isso antes, muito da crise teria simplesmente desaparecido, porque não haveria a execução das hipotecas. Nesse meio tempo, nós precisamos organizar um movimento antidespejo – e temos visto isso acontecer em Boston e em algumas outras cidades. Mas, nesse momento da história nos EUA, há um sentimento de que a mobilização popular está restrita porque a eleição de Obama era a prioridade. Muitas pessoas esperam que Obama faça algo diferente, mas infelizmente os seus consultores econômicos são exatamente os mesmos que criaram o problema. Eu duvido que Obama venha a ser tão progressista quanto Lula. Eu acho que nós teremos que esperar um pouco antes que os movimentos sociais comecem a agir. Nós precisamos de um movimento nacional pela reforma urbana como o que vocês têm aqui. Nós temos que construir uma militância do mesmo tipo que vocês construíram aqui. Nõs temos que, de fato, começar a exercer nosso direito à cidade. E em algum momento nós teremos que reverter o modo como as instituições financeiras são priorizadas em detrimento do povo. Nós temos que nos questionar o que é mais importante, o valor dos bancos ou o valor da humanidade. O sistema bancário deveria servir às pessoas, e não viver à custa das pessoas. A única forma que temos de, em algum momento, nos tornarmos capazes de exercer nosso direito à cidade é controlando o problema da absorção do excedente capitalista. Nós temos que socializar o excedente do capital. Nós temos que usá-lo para atender necessidades sociais. Nós temos que nos livrarmos do problema da acumulação constante dos 3%. Nós chegamos a um ponto em que uma taxa de crescimento constante de 3% irá impor custos ambientais tão imensos, irá exercer uma pressão tão grande sobre as questões sociais, que nós viveremos em perpétua crise financeira. Se nós sairmos dessa crise financeira do modo que eles querem, haverá uma outra crise financeira dentro de cinco anos. Chegamos a um ponto em que não podemos mais de aceitar o que disse Margaret Thatcher, que “não há alternativa”, e que devemos dizer que deve haver uma alternativa. Deve haver uma alternativa para o capitalismo em geral. E nós podemos começar a nos aproximarmos dessa alternativa percebendo o direito à cidade como uma exigência popular internacional, e eu espero que possamos todos nos unir nessa missão. Muito obrigado.